Direito
e sociedade: os limiares do indivíduo e a ordem social.
Em o “Ensaio sobre a cegueira”, um
dos maiores escritores em Língua Portuguesa, José Saramago (1922-2010) leva-nos
à reflexões sobre o ser humano, sua natureza, seus anseios, virtudes e paixões,
contrastando com a ordem social, o direito, as normas, as regras de convivência
em sociedade. Inspira-nos uma análise comportamental do homem, diante de crises
que expõe-no aos limites – até que ponto o sentimento de humanidade permanece
vivo e ativo em uma sociedade desprovida de referenciais de conduta (anomia)?.
Tudo isso, é claro, posto em análise através de uma perspectiva sociológica,
visto que não se concebe o homem alienado de sua condição social.
Ao meditarmos sobre o cenário
oferecido por Saramago, podemos evidenciar três perspectivas, não limitativas,
portanto: a) a sociedade e seu poder sobre o indivíduo – controle social; b) o
indivíduo e a luta pela sobrevivência; e c) a sociedade e a percepção da
realidade.
Na primeira perspectiva, entende-se
que a ordem social legitima o poder de controle da sociedade sobre o indivíduo.
Nesse contexto, a ordem social vigente determina as normas de conduta que cada
indivíduo deve obedecer, visando à coexistência pacífica, ou o mínimo de
observância das regras que garanta a continuação do corpo social. Nesse
diapasão, a “internação” forçada daqueles que foram acometidos pela cegueira,
“o mal branco”, encontra amparo, visto que a importância e o interesse social
subjugam o interesse e o valor individual – neste ponto até o valor da vida e a
dignidade da pessoa humana são desprezadas, pois os internos não podem
ultrapassar certo limite, sob pena de serem prontamente abatidos.
O segundo enfoque revela a situação
anômica experienciada pela sociedade, ou seja, o desregramento, a perda de
todos os referenciais de conduta em sociedade – anomia. Segundo Felippe Augusto
de Miranda Rosa, citado por Ana Lúcia Sabadell, anomia pode ser verificada em
três situações: i) quando o indivíduo transgride as normas, pois o mesmo não se
submete à estrutura social; ii) quando o indivíduo é posto diante de uma
situação conflituosa em que a norma contradiz suas crenças individuais; e iii)
numa situação em que há perda dos referenciais, não apenas no plano individual,
mas para toda a sociedade[1]. Sobre o terceiro prisma,
afirma Sabadell:
Não se
trata somente de um problema dos indivíduos que transgridem as regras de
comportamento, nem de uma situação de conflito de deveres em casos concretos,
mas de uma crise social de caráter amplo, na qual os membros de grandes grupos
sociais (e a sociedade mesma) “não sabem o que fazer”.
Dentre os teóricos que descreveram a
anomia, dois sociólogos ganharam destaque no meio acadêmico: Durkheim e Merton.
No entanto, ao analisarmos a situação generalizada de perda de valores e
referencias por toda a sociedade mostrada em o “Ensaio sobre a cegueira”,
percebemos que os dois teóricos nos fornecem explicações limitadas, pois,
segundo Realino Marra, citado por Sabadell, nas análises sobre a anomia o
indivíduo é sempre colocado como protagonista da desordem anômica[2]. A contrario sensu, na
trama orquestrada por Saramago toda a civilização encontra-se em colapso, pois a
sua organização, seu modo de ser e existir foram dizimados pelo “mar branco
leitoso” da cegueira.
Nesse contexto de perda dos
referenciais ditados pela ordem social, pois a ordem social não mais existe, o
indivíduo, exposto às suas fraquezas e debilidades, é desafiado à
sobrevivência. Nesta luta, todos são expostos a um dilema interior, em que
conflitam as necessidades mais básicas para conservação da vida material
(alimento e proteção) e o sentimento de humanidade que ainda lhes resta.
A terceira perspectiva, representada
na trama pela única pessoa imune à cegueira – a esposa do médico oftalmologista
–, induz-nos à considerações filosóficas acerca da realidade. Em outros termos,
a percepção da verdadeira realidade social não pertence a todos, senão a poucos
indivíduos que, por não terem sido afetados pelo “mar branco”, podem enxergar a
situação de desordem em que a sociedade moderna se encontra.
Por fim, verifica-se que numa
situação de crise geral todas as instituições sociais e as normas ditadas por
elas revelam-se frágeis. O que na verdade mostra-se forte, assim devendo
permanecer, é o sentimento de humanidade que, independentemente das normas
escritas e convenções sociais, resiste às intempéries que venham a assolar a
sociedade.
Autor: Osiel Ferreira
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