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sexta-feira, 7 de março de 2014

Análise do filme "Ensaio sobre a cegueira" (Saramago)

Direito e sociedade: os limiares do indivíduo e a ordem social.

            Em o “Ensaio sobre a cegueira”, um dos maiores escritores em Língua Portuguesa, José Saramago (1922-2010) leva-nos à reflexões sobre o ser humano, sua natureza, seus anseios, virtudes e paixões, contrastando com a ordem social, o direito, as normas, as regras de convivência em sociedade. Inspira-nos uma análise comportamental do homem, diante de crises que expõe-no aos limites – até que ponto o sentimento de humanidade permanece vivo e ativo em uma sociedade desprovida de referenciais de conduta (anomia)?. Tudo isso, é claro, posto em análise através de uma perspectiva sociológica, visto que não se concebe o homem alienado de sua condição social.
            Ao meditarmos sobre o cenário oferecido por Saramago, podemos evidenciar três perspectivas, não limitativas, portanto: a) a sociedade e seu poder sobre o indivíduo – controle social; b) o indivíduo e a luta pela sobrevivência; e c) a sociedade e a percepção da realidade.
            Na primeira perspectiva, entende-se que a ordem social legitima o poder de controle da sociedade sobre o indivíduo. Nesse contexto, a ordem social vigente determina as normas de conduta que cada indivíduo deve obedecer, visando à coexistência pacífica, ou o mínimo de observância das regras que garanta a continuação do corpo social. Nesse diapasão, a “internação” forçada daqueles que foram acometidos pela cegueira, “o mal branco”, encontra amparo, visto que a importância e o interesse social subjugam o interesse e o valor individual – neste ponto até o valor da vida e a dignidade da pessoa humana são desprezadas, pois os internos não podem ultrapassar certo limite, sob pena de serem prontamente abatidos.  
            O segundo enfoque revela a situação anômica experienciada pela sociedade, ou seja, o desregramento, a perda de todos os referenciais de conduta em sociedade – anomia. Segundo Felippe Augusto de Miranda Rosa, citado por Ana Lúcia Sabadell, anomia pode ser verificada em três situações: i) quando o indivíduo transgride as normas, pois o mesmo não se submete à estrutura social; ii) quando o indivíduo é posto diante de uma situação conflituosa em que a norma contradiz suas crenças individuais; e iii) numa situação em que há perda dos referenciais, não apenas no plano individual, mas para toda a sociedade[1]. Sobre o terceiro prisma, afirma Sabadell:
Não se trata somente de um problema dos indivíduos que transgridem as regras de comportamento, nem de uma situação de conflito de deveres em casos concretos, mas de uma crise social de caráter amplo, na qual os membros de grandes grupos sociais (e a sociedade mesma) “não sabem o que fazer”.
            Dentre os teóricos que descreveram a anomia, dois sociólogos ganharam destaque no meio acadêmico: Durkheim e Merton. No entanto, ao analisarmos a situação generalizada de perda de valores e referencias por toda a sociedade mostrada em o “Ensaio sobre a cegueira”, percebemos que os dois teóricos nos fornecem explicações limitadas, pois, segundo Realino Marra, citado por Sabadell, nas análises sobre a anomia o indivíduo é sempre colocado como protagonista da desordem anômica[2]. A contrario sensu, na trama orquestrada por Saramago toda a civilização encontra-se em colapso, pois a sua organização, seu modo de ser e existir foram dizimados pelo “mar branco leitoso” da cegueira.
            Nesse contexto de perda dos referenciais ditados pela ordem social, pois a ordem social não mais existe, o indivíduo, exposto às suas fraquezas e debilidades, é desafiado à sobrevivência. Nesta luta, todos são expostos a um dilema interior, em que conflitam as necessidades mais básicas para conservação da vida material (alimento e proteção) e o sentimento de humanidade que ainda lhes resta.
            A terceira perspectiva, representada na trama pela única pessoa imune à cegueira – a esposa do médico oftalmologista –, induz-nos à considerações filosóficas acerca da realidade. Em outros termos, a percepção da verdadeira realidade social não pertence a todos, senão a poucos indivíduos que, por não terem sido afetados pelo “mar branco”, podem enxergar a situação de desordem em que a sociedade moderna se encontra.
            Por fim, verifica-se que numa situação de crise geral todas as instituições sociais e as normas ditadas por elas revelam-se frágeis. O que na verdade mostra-se forte, assim devendo permanecer, é o sentimento de humanidade que, independentemente das normas escritas e convenções sociais, resiste às intempéries que venham a assolar a sociedade.
     Autor: Osiel Ferreira       




[1] Sabadell, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica : introdução a uma leitura externa do direito. Ana Lucia Sabadell. — São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2000. (p. 69).
[2] Sabadell, obra citada, p. 76.

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