Considerado por muitos como o maior jurista do Século XX, Hans Kelsen nasceu em Praga, Império Austro-húngaro, em 1881, tendo morrido nos Estados Unidos, em 1973, aos 92 anos, já consagrado mundialmente como o fundador da Escola Normativista ou Escola de Viena. Ao longo de sua carreira jurídica publicou várias obras – ao todo, mais de quatrocentas -, dentre elas, Teoria Geral do Estado, Direito Internacional e Estado Soberano, O que é justiça, Teoria Geral do Direito e do Estado, porém, a que mais repercutiu, sendo a mais estudada, corroborada ou negada, sem dúvidas, tem sido a Teoria Pura do Direito.
Prefaciando
sua obra, Kelsen afirma que durante duas décadas havia se dedicado a elaborar
uma Teoria Pura do Direito, “isto é, depurada de toda ideologia política e de
todo elemento científico-cultural, teoria jurídica presa à sua especificidade
em razão da legalidade inerente a seu objeto”. Em outros termos, Kelsen
pretendia livrar a ciência do direito de todos os elementos estranhos,
principalmente o Direito Natural, orientando-a “apenas para o conhecimento do
direito e porque deseja excluir deste conhecimento tudo o que não pertence a
esse exato objeto jurídico” (KELSEN, 2007, p. 52).
O autor explicita as bases da Teoria
Pura do Direito como sendo uma teoria do direito positivo, restrito apenas a
ele, não pertencendo a uma determinada ordem jurídica; define-a como “teoria
geral e não interpretação especial, nacional ou internacional, de normas
jurídicas” (Kelsen, 2007, p. 52).
Considerando que, até aquele
momento, a teoria geral do direito não poderia ser considerada uma teoria
verdadeiramente “científica”, Kelsen, em Teoria Pura do Direito, objetiva
estabelecer as bases da “verdadeira” ciência do direito e elevá-la à mesma
posição das ciências naturais, “aproximando, tanto quanto possível, os
resultados obtidos, do ideal de toda ciência, ou seja, a objetividade e a exatidão”
(Kelsen, in Prefácio).
Segundo a Teoria Pura do Direito, a norma é a fonte do conhecimento jurídico - não é à toa que o autor é considerado o fundador da Escola Normativista -, sendo elaborada por meio de uma ato jurídico e, adquirindo significado através de outra norma, atua como esquema de interpretação dos atos e consequências jurídicos. Afirma Kelsen:
“Com a tese de que só as normas jurídicas
podem constituir o objeto do conhecimento jurídico, afirma-se apenas uma tautologia,
pois, no Direito, o único objeto do conhecimento jurídico é a norma; mas a
norma é a única categoria que, no âmbito da natureza, não encontra nenhuma
aplicação”. (KELSEN, 2007, p. 56).
Sobre
as normas, Kelsen acrescenta que dizer que a norma tem validade significa
afirmar que ela tem uma validade espaço-temporal, que é capaz de regular o
comportamento humano, que está inserida em um ordenamento jurídico efetivo, ou
seja, que é capaz de impor-se através de elementos coercitivos, em suma, “quando
se fala no processo de validade da
norma, nada mais se deve exprimir com isso, senão a existência específica da
norma [...]” (KELSEN, 2007, p. 57).
É notória a preocupação do autor em
dissociar o direito das demais ciências, justificando que sempre aquele foi
associado à moral. Neste sentido, afirma que não se pode negar o imperativo de
que o direito deva ser moral, ou seja, “deva ser bom”. No entanto, enfatiza que
a concepção de direito como elemento da moral e a acepção de que o direito, de
alguma forma, seja moral devem ser repelidas.
Kelsen discorre sobre a necessidade
de se desvincular o direito da moral para, consectariamente, afirmar, segundo a
Teoria Pura do Direito, que as várias acepções de direito como “justiça” –
regularmente presentes nas concepções de Direito Natural, daí o motivo do embate
– são incompatíveis com o direito positivo, pois elas possuem caráter absoluto,
na medida em que não podem ser apreendidas pelo conhecimento racional. Neste
sentido, assevera Roberto Lyra Filho, em O que é Direito:
“[...]
íustum quia iussum (justo, porque
ordenado), que define o positivismo, enquanto este não vê maneira de inserir,
na sua teoria do Direito, a crítica à injustiça das normas, limitando-se ou a
proclamar que estas contêm toda justiça possível ou dizer que o problema da
injustiça “não é jurídico”; (FILHO, 1982, p.17).
O renomado jurista concebe sua
Teoria Pura do Direito como conhecimento anti-ideológico, na medida em que se
manifesta como uma “Teoria do Direito radical-realista”, ou seja, “apresenta o
direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto;
ela indaga do direito real e do possível, e não do direito justo” (KELSEN,
2007, p. 63). Ademais, “justamente por sua tendência anti-ideológica é que a
Teoria Pura do Direito se manifesta como verdadeira ciência do direito”
(Kelsen, 2007, p. 63). Segundo Kelsen:
“A ciência tem o conhecimento como
aspiração imanente, qual seja, revelar seu objeto. A ideologia, porém, encobre
a verdade, com a intenção de preservá-la, de defendê-la, transfigurá-la, ou, na
intenção de agredi-la, de destruí-la, substituí-la através de outra,
desfigurando-a”. (KELSEN, 2007, p. 63, 64).
Outro conceito interessante na
Teoria Pura do Direito é o da antijuridicidade. Na tentativa de cada vez mais
aproximar sua teoria das teorias científicas, Kelsen procura assemelhar o liame
dos fatos explicados cientificamente – causalidade – do elo entre condição
jurídica e consequência jurídica – a imputação.
Segundo a Teoria Pura do Direito, o
objetivo do ordenamento jurídico seria “o de motivar os homens a uma conduta,
através da representação desse mal [poder coercitivo] que os ameaça, no caso de
uma conduta, uma conduta contrária”. (KELSEN, 2007, p. 72). Afirma também que a
norma jurídica que não leva em consideração o dispositivo jurídico que enlaça a
condição jurídica à consequência jurídica, ou seja, o ato coercitivo – a
imputação –, “não pode ser a expressão do direito”. (KELSEN, 2007, p. 74).
Um dos pontos nodais da Teoria de
Kelsen situa-se no conjunto do ordenamento jurídico e seu escalonamento, qual
seja, a fundamentação teórica da unidade composta de uma pluralidade de normas.
Como fundamento desse encadeamento das normas de um ordenamento jurídico, ou
seja, sua unidade, Kelsen concebe a denominada “Norma Fundamental”, “como fonte
comum, [que] constitui a unidade na pluralidade de todas as normas que integram
um ordenamento”. (Kelsen, 2007, p. 94). Sobre o significado da norma
fundamental, Kelsen assevera:
“A Teoria Pura do Direito opera com essa
norma jurídica fundamental como se fora uma situação hipotética. Sob a
suposição de que ela vale, vale também o ordenamento jurídico sob o qual
repousa. Confere ao ato do primeiro legislador e, por isso, a todos os demais
atos que repousam no ordenamento jurídico [...]”. (KELSEN,
2007, p. 97).
É de suma importância destacar o
pensamento kelseniano em relação ao escalonamento do ordenamento jurídico. Nele
a Norma Fundamental coloca a Constituição no posto jurídico-positivo mais
elevado, tendo esta a função de “regular os órgãos e o procedimento da produção
jurídica geral, ou seja, da legislação”. (Kelsen, 2007, p. 103).
É
mister destacar o procedimento elaborado por Kelsen quando determinada lei for
produzida de forma não prescrita e contiver conteúdo diverso do texto
constitucional; neste caso, a norma gozará de validade, por estar positivada,
cabendo a decisão de anulação a um Tribunal Constitucional.
Aprioristicamente,
podemos afirmar que várias são as contribuições kelsenianas para a “ciência do
direito”, afinal, ninguém seria considerado “o maior jurista do seu tempo” se
não tivesse sido relevante para o seu momento histórico, nem houvesse legado
conhecimentos importantes para os momentos históricos futuros.
Entretanto,
urge-nos explicitar algumas ideias críticas acerca das concepções kelsenianas,
especificamente sobre a Teoria Pura do Direito; pois, é assente que mesmo para
os conhecimentos válidos e relevantes a crítica é indispensável à construção de
novos conhecimentos. Do contrário, desenvolvem-se conhecimentos enrijecidos,
até mesmo, como meros dogmas.
Em
primeiro lugar, considera-se que a “Teoria Pura do Direito” não é uma teoria
“pura”, na acepção de que esteja isenta de ideologias. Ela é fruto da doutrina
positivista, no afã de “neutralidade axiológica”.
A
empresa de Kelsen em desejar uma “ciência do direito” com métodos próprios,
sobretudo, buscando “objetividade e exatidão” em seus resultados, é passível de
crítica, pois, até mesmo para as ciências naturais a “objetividade e a
exatidão” nem sempre se confirmam. Para a Física, por exemplo, as propriedades
da luz dependem do modo como é observada.
Outra
crítica, inclusive citada por Kelsen, é que teorizar direito sem levar em
consideração as concepções de justiça seria o mesmo que forjar bases a
ordenamentos jurídicos meramente formais e desumanos, em que se desloca a
importância central do homem para a norma, servindo apenas como instrumento de
dominação e poder, relegando a um plano inferior as conquistas históricas da
humanidade.
A
abstração teórica da “Norma Fundamental” constitui-se numa acepção metafísica,
o que a aproxima do Direito Natural.
Ademais,
a crítica ao pensamento kelseniano em desejar uma separação absoluta entre
direito e moral. A moral deve pertencer ao universo das relações jurídicas,
inclusive, como fonte do direito.
No entanto, cabe
aqui reafirmarmos a importância histórica de Kelsen – não apenas histórica, mas
como construtor de conhecimento – e afirmar que as críticas oriundas apenas de
conhecimentos fragmentados, podem constituir-se apenas em preconceitos, pois os
conhecimentos relevantes produzidos pelo mais fecundo literato jurídico do
Século XX não se esgotam apenas em uma obra. Afinal, como diria o grande
mestre, Machado de Assis, “o diabo não é tão feio como se pinta”.
Referências:
-KELSEN, Hans, 1881-1973. Teoria Pura do direito: introdução à problemática científica do direito / Hans Kelsen; tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. - 5 ed.
– São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Cap. I - IV.
-TORRES, Ana Paula Repolês. Uma análise epistemológica da teoria pura de Hans Kelsen. Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun.2006. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/revista/numero33/artigo09.pdf> Acesso em: 01 de Maio. 2012.
-O que? Teoria Pura do Direito. Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: <http:www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/7229.pdf> Acesso em: 01 de Maio. 2012.
Resenhista: Osiel Ferreira.
Resenhista: Osiel Ferreira.